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sexta-feira, 24 de junho de 2022

Exercício de escuta musical: O Relax Requiem op. 100 de Ernst Widmer, a Cantata Bwv 60 de J. S. Bach e o Concerto para violino de Alban Berg / Music listening exercise: The Relax Requiem op. 100 by Ernst Widmer, the Cantata Bwv 60 by J. S. Bach and the Violin Concerto by Alban Berg.

 Olá ... de volta ao blog com mais uma postagem.

Resolvi recentemente fazer um vídeo no youtube para compartilhar com alunos e amigos um trecho de um disco de vinil da minha coleção. Como esse é um fonograma um pouco raro, achei pertinente e interessante compartilhar pelo menos um trecho. O álbum em questão é esse:



https://www.discogs.com/release/13371224-Ernst-Widmer-Alfredo-Esteban-Rey-Hans-J%C3%BCrgen-Ludwig-Conjunto-M%C3%BAsica-Nova-UFBA-10-Anos-1973-1983

E o trecho que decidi compartilhar no youtube foi o lado A do LP, que contem a obra "Relax Requiem" opus 100 do compositor suiço/brasileiro Ernst Widmer. Até aí tudo bem ... eu já tinha ouvido algumas vezes a obra e sempre a considerei uma peça interessante e intrigante. Mas, ao estudar um pouquinho mais profundamente algo interessante, começamos a desenrolar um maravilhoso novelo de linha que nos leva a uma incrível aventura intelectual. Quando comecei a desenrolar a linha e entender o caminho da obra, lembrei muito mesmo das conversas em sala de aula com meus alunos. Sempre digo em sala de aula que "para ser um músico virtuoso, precisa ser antes de tudo um ouvinte virtuoso de música e isso requer prática". Pois bem, como todo professor bem sabe, é preciso ser aluno antes de tudo para ser professor ... é preciso ser aluno pra vida toda e ter sempre a "mente de principiante". O que aconteceu ao pesquisar um pouco sobre o compositor do Relax Requiem op. 100, foi que me deparei com um compositor incrivel que não conhecia. Ernst Widmer tem um catálogo incrível de obras escritas para vários instrumentos (inclusive o violão), e sua obra Relax Requiem op. 100 tem conexão direta com a Cantata Bwv 60 e uma provável ligação de afetividade intelectual com o Concerto para Violino de Alban Berg. Eu também não conhecia essas duas obras e fiquei numa felicidade incrível ao descobrir essas conexões e vislumbrar um imenso campo para estudo, que amplia minhas possibilidades de evolução como ouvinte de música. 

Então vamos por partes. Primeiro vou deixar aqui algumas breves informações biográficas sobre Ernst Widmer e alguns links, e depois vou discorrer rapidamente sobre as três obras em questão e também deixar algumas ligações pra ajudar quem quiser se aprofundar um pouco mais.

"Ernst Widmer (1927-1990) foi um compositor, regente, pianista, professor e pedagogo musical suíço-brasileiro. Natural da Suíça, veio para o Brasil em 1956 a convite de Hans-Joachim Koellreutter. Instalou-se em Salvador, onde atuou como professor na Escola de Música da UFBA. No ano de 1960 naturalizou-se brasileiro. Entre seus alunos destacam-se Lindembergue Cardoso, Jamary Oliveira e Paulo Costa Lima. Sua obra contempla traços do folclore musical baiano e abrange vários gêneros musicais. Sua produção artística chega ao opus 173 e abrange vários gêneros musicais (peças didáticas, religiosas, de concerto, ópera, balé, música para cinema e teatro) e enorme variedade de formações vocais e instrumentais. Foi membro da Academia Brasileira de Música, tendo ocupado a cadeira 31. Por desejo do compositor, a Ernst Widmer Gesellschaft, de Aarau (na Suiça), mantém seus manuscritos autógrafos e detém seus direitos autorais." (Wikipedia)

Na wikipedia não diz isso, mas o grande artista brasileiro Tom Zé foi aluno de Widmer e de Koellreutter também. Essa informação está na pagina oficial de Tom Zé: https://tomze.com.br/

Ernst Widmer Gesellschaft, uma fundação criada para difundir e proteger sua obra, publicou em alemão um catálogo com suas obras: http://www.ernstwidmer.ch/

A compositora e musicóloga Ilza Nogueira publicou esse catálogo, através da UFBA, em português e inglês:

Ao consultar o catálogo percebemos a existência de 4 obras para violão solo.

1- Serenada, op. 113

2- Tiradentes, op. 119

3- Cinco peças para violão op. 174

4- Variedade (sic.) Variações progressivas sobre "Bão-balalão" - sem nº de opus


Encontrei gravações apenas das duas primeiras obras para violão de Widmer, executadas pelo violonista brasileiro Eric Moreira. Pelo que li até o momento, são as únicas gravações das obras para violão deste compositor. Aqui está o vídeo da Serenada op. 113 de Widmer tocada por Eric Moreira:




Voltando agora ao Relax Requiem op.100 de Ernst Widmer. Não tive ainda acesso à partitura dessa obra. Conheço ela apenas através do fonograma que possuo, e não sei de outra gravação dessa peça. Isto posto, vamos ao que pude entender. 
O LP tem outras duas obras de outros compositores além do Requiem de Widmer ... todas as obras que estão no disco foram submetidas por seus compositores em concursos de composição e receberam premiações. O opus 100 de Widmer, por exemplo, recebeu o 1º premio no "Concurso Latino-Americano" de 1978. Aqui está um pequeno trecho do texto presente no encarte do LP: 

"As três obras foram gravadas ao vivo. Compostas para os Concursos Latino-Americanos de 1978 e 1979, respectivamente, elas têm em comum o envolvimento com material preexistente. Assim, RELAX-REQUIEM origina-se no Choral da Cantata nº 60 de J.S.Bach, TRUNCA DINÂMICA nasce de um módulo rítmico extraído da chacarera, música popular argentina e, em ASFALTANDO O NORDESTE emergem e submergem melodias características nordestinas. Todavia não se trata de paródias."

Os compositores das outras duas obras presentes no LP são: Hans-Jürgen Ludwig e Alfredo Esteban Rey.


"Relax Requiem op.100

Requiem em forma de variações sobre um Choral de J S Bach

1º Requiem

2º Dies Irae

3º Memória

4º Lacrimosa

5º Lux Aeterna

Obteve o 1º premio no Concurso Latino Americano (de composição) de 1978.

Instrumentação: flauta, clarinete, fagote, trompa, trompete, piano, percussão e cordas friccionadas.

Baseia-se no Choral da Cantata BWV 60 de J S Bach."



Portanto, o Relax Requiem está explicitamente ligado com a Cantata Bwv 60 de J. S. Bach. Mais especificamente com o 5º e último movimento desta Cantata, o Choral. Esta é uma obra não muito extensa de J. S. Bach. A cantata inteira tem por volta de 15 a 17 min. dependendo da interpretação. E o último movimento, o Choral, tem menos de um minuto e meio de duração. 

A gravação que usei como principal referência para minha escuta nesse exercício foi a de Harnoncourt:

https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kIYbrZyhQGqIe1gnMpP5MLDlEdBIq6yOg&feature=share


Ouvir a cantata e seu Choral repetidas vezes me levou a duas questões: 
1) por que essa Cantata?  Ou mais especificamente, por que esse Choral? O que esse um minuto e meio tem de especial para Widmer? Claro, Bach é sempre incrível ... mas deve ter algo aí pra essa escolha tão específica; e 2) por que um Requiem? Por que Relax? 

Ao começar uma pequena investigação do Choral da Cantata de Bach apareceu a pista que nos leva a nossa terceira obra em questão nesse exercício. Mas vamos concluir essa parte do texto com mais algumas informações sobre a Cantata Bwv 60 de J. S.  Bach.

Esta obra conta com 5 movimentos, assim como o Requiem de Widmer. O titulo da cantata é "O Ewigkeit, du Donnerwort" (Ó Eternidade, você palavra de Trovão) e o Choral, que é o 5ºmov da cantata (com apenas 1:20 min), tem o título de "Es ist genug" ( "Basta").

https://en.wikipedia.org/wiki/O_Ewigkeit,_du_Donnerwort,_BWV_60


Neste link está um video bastante interessante com uma aula sobre a Cantata Bwv 60 de J. S. Bach.
(Em alemão com legendas em inglês): https://youtu.be/i6GqgOqtjQw

(...) "O coral de encerramento é "Es ist genug" (Basta). (O musicólogo) Dürr observa que a melodia é de Johann Rudolph Ahle, um predecessor de Bach como organista em Mühlhausen. A melodia começa com uma sequencia incomum de quatro notas progredindo por intervalos de segundas maiores (tons inteiros), juntos abrangendo o intervalo de um trítono, também chamado de "diabolus in musica". Durante o tempo de Ahle, (o trítono) era uma figura musical extrema, adequada para representar a passagem da alma da vida para a morte. (...) Alban Berg usou o cenário coral (sic.) de Bach em seu Concerto para Violino." (wikipedia)


Quando li essa última frase foi onde pensei: "opa! Eu conheço esse concerto? É uma obra bem famosa entre os violinistas ... acho que já ouvi. Será?" ... Não conhecia mesmo!

O motivo de quatro notas utilizado por Widmer, Bach e Berg são as notas fá, sol, lá e si natural. Formando, de fá até si, o intervalo de quinta diminuta ou quarta aumentada também conhecido no mundo da música antiga como "Diabolus in musica" (Trítono, três tons) ... O fato de esse intervalo musical ter uma ligação com "uma figura musical extrema, adequada para representar a passagem da alma da vida para a morte" poderia, por si só, justificar o título e a estrutura do Requiem Relax op 100 de Widmer. Mas e quanto a Berg? Não seria ele o guia que teria conduzido Widmer até Bach e especificamente até esse Choral? Será que o concerto tem algo de Requiem também? Por que Berg precisava de uma figura musical que simbolizasse a morte em seu concerto? Essas perguntas me levaram a baixar uma partitura do Concerto para Violino de Alban Berg no imslp ,e a procurar também uma boa gravação dessa obra. Eu não podia simplesmente abandonar o exercício na metade.

https://imslp.hk/files/imglnks/euimg/7/7f/IMSLP612921-PMLP9697-Berg_Violin_Concerto.pdf


A gravação que utilizei foi com a violinista Anne-Sophie Mutter:

https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kyX4gpyZw1Z0qs9zrG2J1eUw64wY0vl_8&feature=share


Nesse momento do meu exercício fiquei maravilhado com a beleza e complexidade do Concerto de Berg. E percebi, obviamente, que vou ter que estudar muito essa música pra ter algum domínio da compreensão da obra como ouvinte. "Fascinante", eu pensei mais uma vez. Resolvi que era o momento em que eu precisava contextualizar cronologicamente, e biograficamente, o concerto de Berg. Vou deixar aqui algumas informações que são facilmente encontradas na internet:


"O Concerto para Violino de Alban Berg foi escrito em 1935 (a partitura é datada de 11 de agosto de 1935). É provavelmente a peça instrumental mais conhecida e executada de Berg, na qual o compositor procurou conciliar diatonicismo e dodecafonia. (...) A peça resultou de uma encomenda do violinista Louis Krasner. Quando recebeu a comissão pela primeira vez, Berg estava trabalhando em sua ópera Lulu e não começou a trabalhar no concerto por alguns meses. O evento que o estimulou a escrever foi a morte por poliomielite de Manon Gropius, de 18 anos, filha de Alma Mahler (viúva do compositor Gustav Mahler) e Walter Gropius (Arquiteto, famoso por estar ligado ao movimento Bauhaus). Berg colocou Lulu de lado para escrever o concerto, que dedicou "À memória de um anjo". (...) Berg trabalhou na peça muito rapidamente, completando-a em poucos meses; acredita-se que seu trabalho no concerto foi em grande parte responsável por sua falha em completar Lulu antes de sua morte em 24 de dezembro de 1935. O concerto para violino foi o último trabalho que Berg completou. Em uma carta a Krasner datada de 16 de julho de 1935, Berg confessou:

"Ontem terminei a composição [sem a orquestração] do nosso Concerto para Violino. Provavelmente estou mais surpreso com isso do que você... o trabalho me deu cada vez mais alegria. Espero – não, tenho a convicção confiante – de ter conseguido."(...)

Alban Berg faleceu também em 1935. (...) sua peça mais conhecida é seu Concerto para Violino, no qual, assim como na maior parte do seu trabalho, combina a técnica dodecafônica com as passagens harmônicas tradicionais da música europeia.

Berg fazia parte da elite cultural de Viena durante o início do século XX. No seu círculo de amigos encontram-se os músicos Alexander von Zemlinsky e Franz Schreker, o pintor Gustav Klimt, o escritor e sátiro Karl Kraus, o arquiteto Adolf Loos, e o poeta Peter Altenberg. (...).

Faleceu provavelmente devido a picada de um inseto e ao consequente envenenamento sanguíneo, aos 50 anos." (Wikipedia)

links:

E com isso concluí meu exercício de escuta musical ligando três obras de diferentes épocas e refletindo sobre como a figura musical do trítono, que inspirou Bach e ligou o Concerto de Berg à obra do mestre barroco, serviu também de material para um Requiem misterioso de um compositor tão próximo à mim (um brasileiro, pernambucano e recifense) e que eu desconhecia totalmente, mesmo tendo esse fonograma em minha coleção por tanto tempo. As três obras têm uma relação com a morte. Mas talvez a obra de Widmer seja também um Requiem para Alban Berg, construído através de J. S. Bach. Foi como passei a ouvir o Relax Requiem opus 100 de Ernst Widmer. Como é incrivel a transformação que a contextualização faz em nossa percepção. O passo seguinte seria analisar tudo e ouvir mais vezes para desenvolver uma compreensão mais técnica e profunda de todo o material envolvido no exercício. E depois voltar e fazer tudo de novo. O caminho é, portanto, o objetivo em si mesmo.

O motivo do desejo de compartilhar isso aqui no blog é exatamente esse desenrolar do novelo de conexões e o prazer da investigação e da descoberta. Tocar um instrumento musical, e estudá-lo seriamente é, antes de tudo, ser ouvinte de música. Se perguntarmos a qualquer virtuosi de qualquer estilo qual foi seu caminho para o domínio de sua arte, com toda certeza ouviremos as palavras "ouvir música" como parte da resposta. Precisamos ouvir, de diversas maneiras, diversos tipos de música e entender de uma vez por todas que a habilidade de ouvir música tem que ser, assim como a prática do instrumento musical, trabalhada e exercitada constantemente.


Agradecimentos especiais a Maria Flor pela revisão,
e a C. A. da Silva pelas dicas.

Grande abraço e bons estudos.

:)

João Paulo Pessoa.







sexta-feira, 17 de junho de 2022

Postura no violão clássico: algumas considerações. / Classical guitar posture: some considerations.


 


Olá ... de volta às postagens aqui no blog. Recentemente criei um video no youtube onde discorro um pouco sobre a questão da postura corporal e do posicionamento do instrumento musical em relação ao corpo do instrumentista na prática daquilo que costumamos chamar de "violão clássico" ou "violão erudito". Existem algumas pequenas coisas que gostaria de acrescentar ao que foi dito no video: 

1- Se você não tem um professor tudo fica bem mais dificil no que concerne aos pequenos (e aos grandes) ajustes necessários para o seu progresso. Acho que aprender um instrumento musical inserido dentro de uma tradição e de um contexto histórico sem o auxilio de um professor ou mesmo sem o ambiente musical de uma boa escola não é o melhor caminho a ser trilhado. Aulas presenciais tendem a ser mais eficientes também. 

2- A postura que funciona pra mim talvez não funcione pra você. Isso parece obvio ... mas não é. Existe um caminho bastante tentador na arte de ensinar que nos leva ao confortável pensamento de que o melhor é "passar" para o aluno aquilo que funcionou para nós, ou "ensinar da forma que aprendemos" ... mas, como diria o grande mestre Zen Shunryu Suzuki "nem sempre é assim". Por outro lado, na fundamental e humana arte de aprender, somos igualmente tentados a pensar que algo não funciona bem pra nós quando não nos saímos bem nas primeiras tentativas. O segredo está quase sempre no equilíbrio. Para o professor é importante estar apto e aberto a guiar o aluno por experimentações e caminhos que talvez ele mesmo não tenha trilhado ou experimentado em sua trajetória. Igualmente no papel de alunos, devemos ter o bom senso de entender que o tempo, a paciência e a persistencia são fundamentais em nossa jornada. Encontrar sua postura (e/ou posicionamento) ideal para a prática do seu instrumento musical é parte integral do próprio estudo e portanto um processo constante.

3- Somos todos humanos e em constante transformação. 


Aqui está o video:


Espero ter ajudado. 

Grande abraço e bons estudos.

João Paulo Pessoa.