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quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Análise da “Sonatina para guitarra” de Frederico Moreno Torroba.


Frederico Moreno Torroba (1891-1982).


Saudações a todos. Estou publicando aqui uma análise que fiz desta peça do Torroba e alguns dados sobre este compositor. Espero que seja útil para quem estiver interessado em tocar esta importante peça do repertório do violão.
A partitura desta peça está disponível para venda na maioria dos grandes sites de venda de partituras da internet.
Obrigado e boa leitura.
João Paulo Pessoa.
Dados biográficos do compositor.

Frederico Moreno Torroba nasceu em Madrid, em 13 de março de 1891. Seu pai, José Moreno Ballesteros, de quem recebeu as primeiras lições de música, era organista, diretor de orquestra, compositor e professor do conservatório de Madri. Nesta instituição Frederico estuda com o professor Conrado del Campo. Suas primeiras obras são de caráter sinfônico, mas logo ele passa a interessar-se pelas “zarzuelas”, um gênero de teatro lírico espanhol de caráter popular e folclórico.
Torroba foi desde cedo um nacionalista, como muitos de sua geração. Foi pupilo de Felipe Pedrell, “pai” do nacionalismo Espanhol. Sua música de câmara foi negligenciada, com exceção das séries de boas obras para violão, dedicadas em sua maioria a Andrés Segovia. São obras importantes de Torroba para o repertório violonístico a Suíte Castellana (1926), o Nocturno (1927), a Bugalesa (1928), a suíte Piezas Características (1931), a Sonatina (1953), esta última sua obra mais popular e também mais importante. Devem ser citadas também Mandronos(1954), Aires de la Mancha(1966) e o concerto para violão e orquestra Homenaje a la Seguidilla, entre muitas outras obras importantes[1]. Vale lembrar que o movimento nacionalista espanhol estimulou bastante a composição dedicada ao violão, que é um instrumento típico.
Sua primeira obra estreada no Teatro de Madrid foi Las decididas, e sua primeira Zarzuela que alcançou popularidade foi La mesonera de Tordesillas, com libreto de Sepúlveda y Manzano, estreada em 1925 no mesmo teatro. Chegou a compor mais de oitenta obras líricas de caráter nacionalista. Escreveu peças como Manola, la del portillo, La Marcharena, de ambiente andaluz, estreadas em 1928, Cascabeles, Baturra de temple, El aguaducho, Azabache e a zarzuela de ambiente asturiano Xuanón. No entanto, a sua obra lírica mais famosa é Luisa Fernanda, estreada no Teatro Calderón em 26 de março de 1932, com libreto de Federico Romero e Guillermo Fernández Shaw.
Torroba foi membro da academia de Bellas Artes de Madrid (1935), presidente da ”Sociedad de Autores Españoles” (1975), empresário, diretor artístico, durante mais de vinte anos foi diretor dos teatros “Calderón” e de “la Zarzuela” de Madrid e da “Compañía Lírica Nacional”, além de destacado compositor de sua época.
Morreu em sua cidade natal em 12 de setembro de 1982[2].

Torroba e Segóvia.

Para explicar um pouco melhor a relação de Torroba com Segóvia segue um comentário feito pelo violonista brasileiro Fábio Zanon no terceiro programa de sua série de programas radialísticos “A arte do violão”, vinculada na rádio cultura FM. Este foi um programa inteiramente dedicado a Segóvia, mostrando gravações feitas entre 1927 e 1939.

“A estréia de Andrés Segovia em Paris em 1924 é um marco na carreira do andaluz e na história do violão. Até então o instrumento era visto como uma curiosidade fora dos círculos de aficionados e a carreira de Segovia ainda não se havia projetado fora da Espanha, com a exceção de ocasionais visitas à Argentina. Este recital contou com a presença de uma multidão de figuras importantes da cena musical parisiense e a surpreendente qualidade artística de Segovia transformou-o numa celebridade num golpe único. A partir desse momento, sua carreira internacional tomou corpo e sucessivas estréias na Inglaterra, Alemanha, Bélgica, URSS, EUA e Áustria e as primeiras gravações realizadas em 1927 começaram a projetar o seu nome como o de um pioneiro musical e de um artista de qualidade indiscutível. Foram os primeiros passos da criação do mito Segovia.
Este era o momento para ele aproveitar a súbita elevação de seu perfil público e fazer contatos com os compositores mais destacados de sua época para que escrevessem obras originais para violão, uma idéia que, na época, ainda era considerada estapafúrdia.
Depois da Homenaje de Falla de 1920, a obra geralmente aceita como a primeira escrita para Segovia é a Danza de 1923 (ou, segundo Segovia, de 1919), publicada como último movimento da Suíte Castellana de Moreno Torroba. Se escrever para Segovia praticamente se tornou uma moda depois que obras de vulto foram estreadas depois de 1925, seria necessário um dom profético para se supor que uma obra escrita para o violão, antes de 1924, para um artista ainda emergente, seria tempo bem empregado. Este crédito tem de ser dado a Moreno Torroba”[3].




Análise da “Sonatina para guitarra” de F. M. Torroba

I. Allegretto

Forma: Sonata.
Tonalidade: Lá maior (tônica).
Divisão rítmica: ¾.

Compassos 1 a 30 (31/32): exposição
· 1 a 16: primeiro tema.
· 17 a 28: segundo tema.
· 29 e 30: ponte I (retorno ao primeiro tema seguido pelo segudo).
· 31: substituição do compasso 1.
· 32: ponte II (passagem para o desenvolvimento).
Comentário: O motivo rítmico que pontuará todo o movimento é deixado bastante em evidencia desde o primeiro compasso. Chamemos este motivo de “fio condutor”.No compasso 1 ele aparece na voz superior, e no compasso 2 aparece como resposta no baixo. Esta resposta (com uma semínima no final) é o elo que dá coerência a este primeiro tema. Os dois primeiros compassos são uma afirmação bastante incisiva e conclusiva em si mesma. Os compassos 3 e 4 são o reflexo dos dois primeiros, mas de uma forma não-conclusiva, suspensa, para dar margem ao restante da argumentação, que por enquanto vai sendo construída de dois em dois compassos. No quinto e no sexto temos novamente uma resposta e a conclusão de uma frase; e nos dois seguintes uma pausa na movimentação rítmica da voz superior e uma valorização do motivo principal no baixo: uma ponte. É como se este último estivesse agora dizendo ao ouvinte: “Agora que você me conhece, veja o que eu tenho a dizer”. E segue um novo trecho de oito compassos. A coerência métrica de Torroba é impecável. Temos nestes dezesseis compassos iniciais: uma frase de 6 compassos, formada por 3 membros de 2 compassos cada, com uma ponte de 2 compassos, seguida por outra frase e outra ponte de igual tamanho, terminando na tônica. Esta mesma estrutura se repete de forma idêntica nos compassos 60 a 76.
No compasso 17 tem início o segundo tema desta primeira parte do Allegretto. Aparentemente, estamos agora no sexto grau (fá# menor). Continuamos com membros de 2 compassos, mas no compasso 21 temos um membro que dura até o primeiro tempo do compasso 23, e neste último tem início um que termina no compasso 25, chegando finalmente no quinto grau (Mi maior), que é o objetivo deste trecho. Nos compassos 21 a 24 o ouvinte chega a ficar ansioso pela chegada da dominante. A preparação para o retorno à tônica só ocorre no compasso 30. Temos então duas frases de 4 compassos cada (17-20 e 21-24), uma frase de 5 compassos (25-29) e a ponte para a tônica (30). Na casa 1, temos um ritornello. Na casa 2 (compasso 32), a nota que está no último tempo já é o inicio da primeira frase do desenvolvimento.




Compassos (32) 33 a 59 (60): desenvolvimento.

Comentário: Esta parte parece começar a partir da idéia do segundo tema da exposição. Pelo menos no que diz respeito ao ritmo. Os membros das frases estão sincopados. A primeira frase começa, como já foi dito, no último tempo do compasso 32. Este membro termina no primeiro tempo do compasso 34. O segundo membro desta frase vai do 34 ao primeiro temo do 36. Temos uma pequena passagem, e no primeiro tempo do compasso 37 começa a segunda frase. No compasso 38 o nosso “fio condutor” reaparece no baixo. As idéias dos dois temas da exposição vão sendo colocadas em contraposição, como se estivesse havendo uma discussão entre as duas, um embate que vai do compasso 37 ao 47, onde um rallentando acalma os ânimos. No compasso 48 um canto (bien cantado e a tempo) anuncia a volta de um outro motivo da exposição, o mesmo dos compassos 23/24 e 25/26. Aparecem idênticos nos compassos 50/51 e 52/53. Temos agora uma pequena coda do 54 ao 59. No compasso 60 está a já vista ponte de retorno para o tema principal da exposição. Finda aqui a seção desenvolvimento e tem início a re-exposição.

Compassos 60 a 90 (91/92): re-exposição.
Compassos 93 a 100: coda final.

Comentário: Como já foi dito, o primeiro tema (60 a 76) reaparece idêntico ao da exposição.
O segundo tema (77 a 88/89) nesta última parte do allegretto é que prepara todo o caminho para a coda final. Acontece que ele começa não mais no sexto grau da tônica como na exposição, mas sim no segundo. Isto vai, muito engenhosamente, abrir caminho para a conclusão deste movimento. No que diz respeito à sua estrutura rítmica e melódica, está igual à como estava na exposição. A diferença é apenas a mudança de tonalidade. Pelo menos até o compasso 88. Aqui começa o caminho para a coda final. Temos neste compasso uma escala ascendente que deixa de utilizar o si bemol e volta para a tonalidade original. No 89 e 90 temos um pequena passagem. No 91 e 92 temos a reafirmação do “fio condutor”. De 93 a 95 um arpejo em pizzicato no terceiro grau da tônica vai até o mi da 1a corda na 12a casa da escala do violão, preparando de forma soberba o último suspiro do nosso “fio condutor” e sua resposta no 96/97. Estes dois compassos parecem resumir toda a idéia do movimento. Nos três compassos finais um arpejo no primeiro grau leva 3 repetições do acorde da tônica separados por pausa e em piano. Um final bastante sereno que prepara o ouvinte para a calma do segundo movimento da sonatina: o andante.

II. Andante

Forma: ternária (A, B, A’).
Tonalidade: Ré maior (sub-dominante em relação à tonalidade principal da obra: lá maior).
Divisão rítmica: 4/4.

Compassos 1 a 8: parte A.

Comentário: De acordo com Joaquin Zamacois, “o segundo movimento de uma sonata tende a estar escrito como um movimento lento, costumando ser o momento de expressão lírica, elegíaca ou dramática mais intenso e profundo da obra. Sua forma mais comum é a de Lied, que em sua estrutura consta de três secções. Na primeira se expõe o tema principal, que geralmente aparece de novo, total ou parcialmente. A segunda é uma parte central que se compõe de elementos derivados do tema principal, ou até mesmo de uma idéia nova. Finalmente, a terceira é uma re-exposição da primeira, mas com alguma(s) variação(ões).”[4]
Este é exatamente o padrão utilizado por Torroba neste movimento da Sonatina: uma forma de lied. Realmente, trata-se de um momento bastante lírico da peça. Está bastante clara a intenção impressionista do autor. A sonoridade dos acordes lembra Debussy, criando um clima onírico para este movimento. Entretanto, a melodia nos remete também à música espanhola permanecendo fiel ao espírito nacionalista da composição. Esta primeira parte pode ser dividida em duas frases de 4 compassos. Na primeira frase, temos um membro principal no primeiro compasso, nas três primeiras notas (fá#, sol, lá). A resposta vem a seguir indo até o segundo tempo do segundo compasso, com a melodia repousando na nota lá. No quarto tempo do mesmo compasso começa o caminho que vai até o mi do compasso 4, passando por tercinas características no terceiro e quarto tempo do compasso 3. No início da segunda frase, repete-se a afirmação da primeira, sendo que a resposta toma um rumo diferente para criar a cadência no fim da frase, que é na primeira nota (lá) do compasso 8. Neste mesmo compasso, temos uma escala pentatônica indo de lá até mi, que é uma ponte, tanto para o rittornello, quanto para a mudança para a parte B.

Compassos 9 a 19: parte B.

Comentário: Nos compassos 9 e 10, temos um pequeno motivo inspirado no material da primeira parte. É uma progressão que vai do quinto grau menor na segunda inversão ao primeiro grau na primeira inversão indo para a fundamental. É um jogo de pergunta e resposta: a voz aguda afirma com um par de colcheias, uma semínima e uma mínima (lá si, mi, ré), e os o baixo responde com uma tercina e um par de colcheias (fá# mi fá#, mi re). No compasso 10, a tercina do último tempo é a conexão para o trecho seguinte nos compassos 11, 12 e metade do 13. Esta preparação do compasso 10 fez com que a melodia estivesse no baixo na primeira metade do compasso 11. Na segunda metade ela é habilmente passada para a voz aguda. O motivo rítmico com tercina e par de colcheias, ou tercina e semínima, é muito bem explorado. Do ponto de vista harmônico, parece que este trecho do 11 ao 12 está em Sol menor (iv grau menor), levando em conta os acidentes si bemol e mi bemol na melodia. No entanto o centro tonal parece continuar sendo o ré, mas com o fá bequadro caracterizando um ré menor que seria quinto grau menor de sol. No compasso 13 o si deixa de ser bemol, mas o fá continua bequadro. Da metade do segundo tempo de compasso 13 ate o final do 14, temos uma pentatônica de ré menor melódico (com o si bequadro), que é a ponte para chegar no quinto grau da fundamental (ré maior) no compasso 15, sendo que o lá maior neste compasso aparece na segunda inversão. Este trecho em lá maior vai do 15 ao 19. Com relação ao ritmo, continuamos com o mesmo material: combinações de tercinas com pares de colcheias e com semínimas. A melodia, no inicio do 15, é uma referência ao material melódico do compasso 1. No 16, a melodia prepara o quinto grau com sétima de lá maior, que aparece no quarto tempo deste compasso. Torroba utiliza com muita classe o recurso das dominantes secundárias. No compasso 17, o lá maior aparece no estado fundamental. No terceiro tempo deste compasso temos o quinto grau menor meio diminuto de lá, e no compasso 18 a repetição do 17. Uma progressão que lembra bastante a escola impressionista francesa. No compasso 19 temos a preparação para o retorno da parte A, com o quarto e quinto graus de ré maior alternando-se em tercinas.


Compassos 20 a 27: parte A’.
Compassos 27 a 36: coda final.

Comentário: Do compasso 20 ao 23, temos a repetição idêntica do trecho que vai do 1o ao 4o compasso. Na segunda metade do 24 a melodia caminha para o IV grau (1o tempo do 25). Um pequeno cromatismo, vozes em direções opostas, e na metade do 26 temos o quinto grau com sétima, preparando o 1o grau no 27. O pequeno arpejo na fundamental, com harmônicos oitavados, prepara a coda final, que terá uma dinâmica decrescente do Piano ao Pianíssimo.
Nos compassos 28 e 29, temos o quinto grau com sétima e nona. No 30 temos o sexto grau (si menor) e o segundo (mi menor). No 31 temos a preparação para o quinto com sétima que aparece no último tempo deste compasso. No 32 temos o primeiro grau se formando a partir do primeiro tempo até o segundo. No terceiro tempo deste compasso temos o quinto menor meio diminuto, a exemplo do que aconteceu no 17o e no 18o compasso, sendo que agora ele acontece relacionado com a tônica. O 33 é um prolongamento desta idéia. Os compassos 34, 35 e 36 são uma extensão cadencial na fundamental. No 34, um arpejo de harmônicos oitavados, no 35, o acorde de ré maior com harmônicos, e no último compasso, o acorde de ré sem a terça em harmônicos nas cordas graves num pianíssimo(PPP), deixando o ouvinte bastante relaxado e introspectivo para ser surpreendido com o ritmo vivo do movimento seguinte.



III. Allegro

Forma: rondó (A, B, A, C, A, coda).
Tonalidade: Lá maior (tônica).
Divisão rítmica: 3/8.

Compassos 1 a 29: parte A.
Compassos 29 a 33: ponte para a parte B (ponte 1).

Comentário: Uma nova citação do autor Zamacois se faz oportuna: “O movimento final de uma sonata costuma ser esccrito com ritmo vivo. Na forma clássica, foi adotada a forma de rondó (...) esta consiste em reapresentar um tema principal como ‘estibrillho’ , cujas diferentes aparições estão separadas por episódios intermediários com motivos diferentes e tonalidades diversas. Posteriormente, se tentou assimilar o rondó à disposição ternária do tipo sonata, com a concepção do estibrilho como primeiro tema (...).”[5]
Novamente, a descrição de Zamacois do terceiro movimento de uma sonata se encaixa perfeitamente com o que acontece no Allegro da Sonatina de Torroba. Desde o primeiro compasso vemos a indicação de caráter gallardamente, e temos ainda a indicação de dinâmica forte. A primeira frase vai do 1o compasso ao primeiro tempo do 9o compasso. Esta frase pode ser dividida em dois membros: o primeiro, do compasso 1 ao primeiro tempo do 5o , e o segundo, do 5o compasso ao primeiro tempo do 9o . Do 4o para o 5o compasso, e do 8o para o 9o temos cadencias do V para o I grau, o baixo em lá é uma nota pedal. A segunda frase vai da anacrusa do 9o ao primeiro tempo do 17o compasso. Esta progressão começa no segundo grau da fundamental (si menor), e termina no quinto (mi maior). Do 17o ao primeiro tempo do 21o temos uma frase nos baixos bastante típica da música espanhola, e do 21o ao 25o a melodia caminha de volta para a fundamental. Do 25o ao 29o temos a conclusão da parte A. Do ponto de vista rítmico, todo este trecho está calcado em cima do motivo rítmico apresentado nos 4 primeiros compassos: combinações de 4 semicolcheias nos dois últimos tempos, seguidas de uma colcheia, ou três colcheias preenchendo o compasso seguinte. Do compasso 29 ao 33 temos a ponte, que aparece diferente a cada vez que a parte A é apresentada no decorrer do rondó. Chamemos esta de “ponte 1”. Ela é construída por uma escala descendente de mi até lá, com o dó bequadro e o si natural, acabando no acorde de lá maior com sétima do compasso 33. Novamente Torroba faz uso das dominantes secundárias para a modulação para o 4o grau na parte B.

Compassos 34 a 49: parte B.
Compassos 50 a 57: ponte para o retorno de A (ponte R).

Comentário: No compasso 34, início da parte B, já estamos em ré maior (subdominante). Apesar de não haver uma nova indicação de caráter, percebe-se que se trata de um momento completamente distinto da parte anterior. A melodia, agora em nova tonalidade, parece nos remeter a um caráter mais ameno e tranqüilo. A 1a frase vai do compasso 34 ao 40, com uma típica progressão harmônica (I, ii, I7, IV, V, I). Se Torroba precisasse colocar alguma indicação de caráter neste trecho seria bien cantado. A qualidade vocal parece ser bastante perceptível aqui, tendo provavelmente algo de semelhante com a “tradicion Zarzuelera” do compositor. Seguindo, temos a segunda frase do compasso 41 ao 49, que pode ser dividida em dois membros separados por um grupo de 4 semicolcheias no compasso 45. Aliás, este mesmo grupo separa a primeira e a segunda frase no compasso 41.
No compasso 50 tem início a ponte de retorno para a parte A. Chamaremos esta ponte de “R”. Ela é construída a partir de um pedal no mi mais grave do violão e acordes arpejados, já relacionados com a tônica (lá maior), na seguinte progressão: ii, iii, IV, V. Depois, do 53 ao 56, temos uma extensão que utiliza as 4 semicolcheias na mesma nota (si) que é exatamente a dominante de mi, primeira nota do movimento e dominante da fundamental. Forma-se aí, com esta teia de dominantes secundárias, a perfeita ponte para o retorno do tema principal.

Compassos 57 a 85: parte A.
Compassos 85 a 106: ponte para a parte C (ponte 2).

Comentário: Como já foi dito, a parte A é apresentada sempre de forma idêntica, com exceção da ponte que lhe segue. Nos compassos 85 a 106 temos a ponte 2, que nos levará a uma grande sessão central modulatória que será analisada a seguir: a parte C. A ponte 2, mais extensa que a ponte 1, utiliza principalmente tercinas e cromatismo para cumprir a função de ponte modulatória, já que a parte seguinte começa na tonalidade de dó maior. Do compasso 85 ao 97, o intuito do compositor é chegar em fá, que é o IV grau da nova tonalidade. No 98 já temos o fá. Um grupo de 4 semicolcheias no lá bemol desencadeia uma escala descendente em tercinas até o sol no compasso 102. Já temos então a dominante de dó. Do compasso 102 ao 106, uma extensão cadencial nos leva V grau no compasso 107, início da parte C.

Compassos (106)107 a 181: parte C.

Compassos (106)107 a 135: sub-parte C1.
Comentário: O material rítmico é basicamente o mesmo, com exceção da formula rítmica do compasso 114. Esta formula ainda irá aparecer bastante no decorrer deste movimento, em várias partes. Ela parece remeter ao ritmo do Allegretto. Do 106 ao 114 a progressão pode ser resumida em V-I-IV-V-I. Do 114 ao 118 temos o II bemol, que também não é novidade, pois já apareceu na harmonia da ponte 1 em lá maior. Do 117 ao 121 temos um arpejo em tercinas no acorde de dó maior, uma passagem para a verdadeira pedra angular desta sub-parte: os arpejos em semicolcheias do compasso 122 ao 134. É um momento de bastante agilidade virtuosistica da peça, elemento típico da escola flamenca de violão. Do 122 ao 126, a progressão é a famosa I-IIb-III-IIb-I. Do 127 em diante a modulação começa a ser preparada. Parece estar em sol menor a partir daqui, mas é apenas uma passagem pela dominante menor. No 135 o acorde inicial ainda é dó.

Compassos (135)136 a 165: sub-parte C2.
Comentário: Os compassos 135 e 136 preparam a escala descendente em tercinas que vai do sib do compasso 137 ao mi do 138, preparando a chegada do acorde de dó#7 do compasso 139, a dominante da nova tonalidade: Fá#. O suspense entre subdominante, dominante e escalas em tercinas vai do 139 ao 147, onde o acorde aparece cristalizando a modulação. A exploração incansável e genial do material rítmico do início continua, e a progressão harmônica continua toda calcada na simplicidade do I, IV e V grau. No 159, começa a preparação para um retorno à tonalidade de lá maior. O baixo segura a nota pedal Fá#. Os acordes de I e V6/ se revezam nos compassos 159 a 163. Silenciam em dinâmica decrescente enquanto o pedal continua em tercinas. E, de repente, no 165 um fortíssimo anuncia o cromatismo do compasso seguinte e a súbita mudança de tonalidade.

Compassos 166 a 181: sub-parte C3.
Comentário: Esta sub-parte caracteriza-se principalmente pelas citações de materiais rítmicos e melódicos utilizados nos dois outros movimentos da Sonatina. Os acordes de duas notas alternados em tercinas que estão nos compassos 167 a 170 lembram, do ponto de vista rítmico, a passagem para o retorno do tema principal no Andante (compasso 19 do 2o movimento). Por outro lado, as notas utilizada nesta parte do Allegro são as mesmas dos compassos 9 e 11 do Allegretto. Até aqui, as citações são bastante sutis e até um pouco dissimuladas. Mas no compasso 170, a intenção de citar temas fica clara: temos aqui uma clara alusão ao tema principal do Andante. A divisão muda para 4/4, e temos também a indicação Andante. Esta pequena parte de apenas dois compassos é de uma clareza espetacular. Uma quebra do ritmo em que o tema é citado em mi menor, e a conexão com o discurso do 3o movimento continua sólida como rocha. A seguir temos de volta a indicação allegro. Do 173 ao 179 temos de novo o material do 114 a 117 da sub-parte C1, mas agora em ré maior, o IV grau de lá. De 177 a 181 temos uma suspensão que deixa perfeita a entrada da Ponte R no 182.

Compassos 182 a 189: ponte para o retorno de A (ponte R).

Compassos 189 a 217: parte A.


Compassos 217 a 225: ponte para a parte D (ponte 3).

Comentário: Esta ponte 3a ponte parte do mesmo material rítmico e melódico da ponte 1, mas agora em dó# maior. Do 222 ao 225 temos uma passagem para o Mi7, dominante de lá. Não há muito que dizer desta ponte, a não ser o fato de que Torroba consegue a façanha de ser, em determinados momentos, simples e convencional, sem ser monótono.



Compassos 226 a 250: parte D.
Compassos 251 a 272: coda final.

Comentário: O que temos nesta parte D, pelo menos do 226 ao 240, é a repetição do tema da parte B, que era em ré, ou seja, na subdominante, agora na tônica, em lá. Inesperadamente, no compasso 241, uma nota pedal em fá bequadro e um cromatismo na voz central modulam rapidamente a conclusão da parte D para o Fá natural, com cadencia V-I, e material rítmico da parte A.
No 251, a coda final começa em pianíssimo. O fio condutor rítmico deste terceiro movimento é colocado nos harmônicos naturais do violão. No 257 temos um forte súbito, e volta o motivo principal de A. Mas, são apenas os 4 primeiros compassos. Em 262,263 e 264 temos uma pequena passagem para a subdominante e para o iii grau. Seguindo temos pausas de colcheia. A dinâmica está em fortíssimo. O motivo é “gritado” em voz alta novamente (264/265). Seu eco aparece em harmônicos naturais (266/267) com a indicação PP. É cantado mais uma vez, e então um compasso de tercinas completa a extensão cadencial. Pausas de colcheia completam o compasso novamente, e, a seguir, um já esperado acorde de Lá maior potente e arrebatador finaliza a peça, causando no ouvinte a sensação de conclusão de uma epopéia espanhola, coerente, sólida e bela.



Conclusão.

No que diz respeito à peça de Torroba analisada neste trabalho, pouco, ou nada, posso dizer além do que já está explicado na análise. É uma peça importantíssima do repertório violonístico, construída em cima de uma estética nacionalista e ao mesmo tempo impressionista, comum aos compositores espanhóis da geração de Manuel de Falla. A estrutura tem uma enorme coerência, assim como os caminhos melódicos, as fórmulas rítmicas e os encadeamentos harmônicos. Os recursos particulares do instrumento também foram muito bem explorados pelo compositor. Rasgueados típicos nos ataques de acordes, ligados ascendentes e descendentes, notas abafadas com a mão direita (pizzicato), harmônicos naturais e oitavados, scordatura, ornamentações, enfim, um grande repertório de “truques” do violão. Torroba fez de sua “Sonatina” muito mais do que uma demonstração de virtuosismo espanhol e de introspectivismo impressionista, trata-se de uma verdadeira obra de arte de quilate genial. Não é a toa que tornou-se uma de suas obras mais conhecidas.


Bibliografia.

· BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires, ed. Ricordi, 1947.
· Dicionário de termos musicais Groove. 5a Edição.
· DUDEQUE, Norton. História do violão. Curitiba, Ed. UFPR, 1994.
· ZAMACOIS, Joaquin. Curso de las formas musicales. Barcelona, Ed. Labor, 1960.
Sítios pesquisados na internet.
http://www.biografiasyvidas.com/biografia/m/moreno_torroba.htm
· http://www.geocities.com/lazarzuela20/autortorroba.htm
· http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/bibliography.html
· http://www.tvcultura.com.br/ link: Rádio Cultura FM.http://planeta.terra.com.br/arte/violao_intercambio/Ultimaedicao/ArtedoViolao/Artedoviolao.htm
[1] DUDEQUE, Norton. História do Violão. P. 86
[2] Dados extraídos da internet nos sítios http://www.geocities.com/lazarzuela20/autortorroba.htm e http://www.biografiasyvidas.com/biografia/m/moreno_torroba.htm .
[3] na internet em http://planeta.terra.com.br/arte/violao_intercambio/Ultimaedicao/ArtedoViolao/Artedoviolao.htm
[4] in ZAMACOIS, Joaquin. Curso de las formas musicales. P. 119
[5] ZAMACOIS, Joaquin. Curso de las formas musicales. P. 121.

terça-feira, 13 de setembro de 2005

O Mestre da "vihuela de mano"





Um dos fenômenos musicais de grande importância para a música renascentista (não só da Espanha, mas de toda Europa) foi o surgimento da Vihuela. Este instrumento substituiu o alaúde na Espanha e motivou a criação de um repertório de grande importância para a música instrumental deste período. Segundo alguns autores (como Norton Dudeque) a vihuela é talvez o mais antigo instrumento com uma relação direta com o violão moderno. Vale ressaltar também a raiz etimológica da palavra vihuela que vem de “fidicula” (diminutivo de fides) que se transformou em fithele, vielle, viole, viola, vigola, viula, vihuela, vyuela e viguela. No nosso português a “Guitarra Espanhola” recebeu o nome de Violão por conta da vihuela que foi trazida provavelmente pelos bandeirantes portugueses. Na Espanha medieval , chamavam-se vihuela vários instrumentos de cordas com cravelhas quer fossem tocados por arco (vihuela de arco), com uma palheta, também chamada plectro ou pêndolo (vihuela de pêndolo) ou com os dedos (vihuela de mano). Esta última ficou bastante popular no séc. XVI.
O primeiro vihuelista a ter sua obra publicada foi Luys de Milan. Pouco se sabe sobre sua vida. Alguns autores afirmam que ele nasceu em Valência em 1500 e morreu na mesma cidade depois de 1561. Foi músico da côrte de Dom Fernando de Aragon, duque da Calábria. Visitou também a côrte de Dom João III (1521-1557) em Portugal. Além de vihuelista e compositor, Milan também destacou-se como poeta e homem de letras, foi autor do “Libro de motes para damas e caballeros: intitulado el juego de mandar”(1530), e também do “El Cortesano” (1561). Mas a sua principal obra foi seu livro didático de vihuela "El Maestro", "libro de Musica de vihuela de mano", dedicado a João III de Portugal. O livro contém muitas composições para solo de vihuela e para canto e acompanhamento. O título completo da obra de Milán é "Libro de Música de Vihuela de Mano, intitulado El Maestro. en qual trahe el mismo estilo y orden que un maestro traheria con un discípulo principiante: mostrandole ordenadamente desde los principios toda cosa que poderia ignorar para entender la presente obra. Compuesto por don Luys Milan. dirigido ao muy poderoso e invictissimo principe Don Juan: por la gracia de Dios Rey de Portugal y las yslas. Año MDXXXV. Com privilégio real."
A intenção pedagógica do livro está clara não só no seu título como também na ordem em que as obras estão arranjadas, indo de peças (fantasias) simples até chegar em Fantasias e outras obras mais complexas.

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Homenaje pour le tombeau de Claude Debussy


Miguel Llobet (1878-1938)


Manuel de Falla (1876-1946).

Homenaje pour le tombeau de Claude Debussy



Graças à insistência do grande guitarrista catalão Miguel Llobet (1878-1938) junto a Manuel de Falla (1876-1946), o violão ganhou uma das obras mais expressivas do seu repertório. Esta peça foi comissionada por Henri Prunieres, então diretor da Revue Musicale, para um número desta revista dedicado à memória de Debussy. Esta edição da revista recebeu o título de “le tombeau de Claude Debussy” e apareceu em 1o de dezembro de 1920, contendo também obras de compositores como Dukas, Roussel, Bartok, Stravinsky, Ravel e Satie, todas dedicadas à memória de Debussy. Falla decidiu compor uma homenagem associando o violão, instrumento espanhol por excelência, à influencia da música espanhola sobre Debussy, manifestada em obras como Soirée dans Grenade ou la Puerta Del Vino. Desta forma iria cumprir sua homenagem ao mestre francês Debussy, e ao mesmo tempo satisfazer o antigo pedido de seu amigo catalão Miguel Llobet para que compusesse uma peça consistente para enriquecer o repertório violonístico.
A autora Suzanne Demarquez faz uma análise sucinta da obra de De Falla:

“A peça de Falla é um canto fúnebre, um trêno simbólico, tão frequente na poesia espanhola, influenciado pelo espírito musical do amigo perdido. Sua harmonia é baseada essencialmente na 4a fundamental do acorde típico do violão, mi; lá; ré; sol; si, cujas primeiras duas notas também são a fundamental dórica. Nesta 4a o autor situa uma frase rítmica curta, espécie de lamentação surda e amarga que ressoa como um toque de alma por toda a obra. Algumas Lembranças de Ibéria, constituem o esboço de um tema, motivo breve, em tercinas, pelo qual passam o cromatismo e a 2a aumentada caraterísticos (compassos 8 a 15). Os recursos especiais do instrumento são habilmente explorados na forma de arpejos, de acordes amplamente abertos, de escalas e harmônicos oitavados. Para o final, uma modulação nos leva a um piu calmato (compasso 63), valorizando a clara aparição de uma citação textual, de um motivo de habanera, que evoca a Soirée dans Grenade. Uma breve pausa. O toque de almas ressoa pela última vez e se perde pouco a pouco no silêncio.”

A primeira execução pública desta peça de Falla foi realizada por Emilio Pujol (1886-1980) em 2 de dezembro de 1922. Mas tarde foi orquestrada por Falla e incluída na suíte Homenajes, com o título de Elegia de la guitarra.


Extraído de “A história do violão” de Norton Dudeque. Pág 83,84,85.
1984, Curitiba Paraná Brasil . Editora da UFPR

As Variações Malbroug de Fernando Sor

Fernando Sor(1778-1839) .


Olá pessoal!
estou publicando aqui um trabalho que eu escrevi sobre esta peça do Sor e um video com a execução do grande violonista espanhol Narciso Yepes. Espero que gostem e que possa de alguma forma ser útil pra vcs.
João Paulo Pessoa.
Apresentação

O presente trabalho destina-se à cadeira Instrumento III, do curso de bacharelado em violão da UFPE. Como em todos os semestres acontece, trata-se de uma pesquisa sobre uma das obras abordadas no programa que está sendo trabalhado. Desta vez a pesquisa é sobre a forma musical Tema e Variações, sobre a obra do compositor Fernando Sor e, especialmente, sobre as Variações Malbroug, op.28, deste mesmo compositor.
Foi traçado como objetivo principal apresentar o contexto histórico em que a obra se insere, apresentando na introdução alguns dados biográficos de Fernando Sor. Nos textos que seguem estão informações técnicas sobre a forma tema com variações. Em seguida, a peça estudada é comentada.



Introdução: Dados biográficos de Fernando Sor.

Fernando Sor nasceu em Barcelona, Espanha, em fevereiro de 1778. Não se tem a data exata de seu nascimento, mas seu batismo se deu em 14 de fevereiro deste ano, com o nome de José Fernando Maurício Sor. Antes de completar 12 anos, ingressou no mosteiro de Montserrat, sob a direção de Frei Anselmo Viola, compositor e diretor de ensino, onde foi corista e aprendeu os princípios básicos da educação musical, destacando-se entre seus colegas pelo seu talento incomum que desde cedo revelava. Permaneceu no mosteiro durante três anos.
De volta a Barcelona decidiu dedicar-se definitivamente à música. Escolheu o violão como instrumento principal. O estudo do instrumento tinha que ser necessariamente autodidata, por conta da escassez de bons mestres, bem como de métodos e tratados. Nada disso desanimou Sor que empreendeu o estudo com afinco, baseando-se nas suas próprias conclusões e observações. A guitarra (violão) era conhecida como um “instrumento de taverna”. Sor estabeleceu como um de seus objetivos elevar o nível musical deste instrumento e promove-lo como instrumento de concerto.
A maior parte de sua obra é dedicada ao violão. Mas também inclui outras searas da música. Em 1797, com 19 anos, foi levada à cena, no teatro principal de Barcelona, sua ópera "Telêmaco na ilha de Calipso", mais tarde também apresentada em Veneza e Viena. Datam daí suas primeiras apresentações como violonista, e a boa acolhida do público o estimulam a mudar-se para Madri, onde começa a delinear-se o sucesso que marcaria toda a sua vida.
Até 1813 (quando tinha 35 anos) viveu inteiramente na Espanha. Compôs as Seguidilhas para voz e guitarra (algumas com piano), sinfonias, óperas, e muita música para violão, como o Grand Solo, op. 14, por exemplo. Em 1808 a Espanha é invadida por Napoleão Bonaparte. Além de músico, Sor era também militar. Mas não lutou a favor de seu país. Era partidário de Napoleão. Durante a ocupação francesa na Espanha, Sor obteve previlégios e cargos. Com a independência e a expulsão dos invasores Sor se viu forçado a fugir da Espanha.
Em 1813 empreende a primeira viagem a Paris, capital cultural do mundo na época. Lá permaneceu por cinco anos. Depois seguiu para Londres, onde foi tão grande seu sucesso que muitos opinam ter sua atuação nessa capital preparado o terreno para a nunca vista popularidade de que gozou o violão na Inglaterra por volta de 1830. Ali encontrou-se com Mauro Giuliani, outro grande nome na história do violão.
Em fins de 1822, regressou a Paris e realizou um concerto do qual os cronistas da época comentaram: "encantou os parisienses com um instrumento que (...) era uma orquestra completa encerrada numa pequena caixa" Depois disso, segue para a Rússia e leva à cena em Moscou o balé "Cendrillon" que, depois ficaria 3 meses em cartaz no Teatro da Ópera Cômica de Paris. Já bem famoso, segue para São Petersburgo. Com a morte de Alexandre I (de quem Sor, além do publico reconhecimento de seu talento de compositor, recebera de presente uma pérola negra de valor inestimável) foi encarregado de compor a marcha fúnebre.
Foi contemporâneo e amigo de Dionísio Aguado e de Napoleão Coste, tendo tocado em duo com os dois ocasionalmente. Para eles escreveu e dedicou o seu duo Op. 41 "Os dois amigos" e Op. 63 "Souvenir da Rússia". Sor faleceu no dia 13 de julho de 1839 com 61 anos de idade, deixando-nos um considerável número de obras musicais. Suas composições para violão, sem contar as transcrições, são mais de 250. Citamos, além das Variações Malbroug e dos 20 estudios para la guitarra, as "Variações sobre um tema da Flauta Mágica de Mozart", talvez a obra mais executada de Sor. Exemplo de composição para o violão, é obra obrigatória para os violonistas.
Uma característica fundamental de Sor enquanto compositor é que, diferente de alguns de seus contemporâneos como Giuliani, Caruli e Aguado, ele não era um violonista-compositor, mas sim um compositor-violonista. Ou seja, ele escrevia para a música em primeiro lugar e para o violão em segundo. Muitos consideram Sor como “o Betthoven do violão”, por sua capacidade de compor grandes melodias. Observando, por exemplo, os 20 estudios para la guitarra, nota-se não apenas a intenção de prover técnica ao estudante, mas também a fluência musical. Sor levou ao extremo a idéia do violão como uma “pequena orquestra”. Sua escrita para o instrumento é muito hábil em emular timbres que simulam toda a orquestra. O mundo do violão erudito deve muito a este compositor por seu trabalho de elevação da qualidade da música escrita para o instrumento.


A forma Tema com variações.

Esta é uma forma bastante livre. Trata-se de um tema que sofrerá variações constantes, cujas seções também podem ser de número variável dependendo do compositor.
O tema e variações sustenta-se num único tema, ou seja, todas as seções são desdobramentos deste primeiro tema, mas a maneira de contrastá-lo pode variar enormemente. É preciso muita habilidade do compositor para tornar a forma interessante e não cair na monotonia. Pode-se analisar esta forma como binária (é o caso das Variações Malbroug), conforme a figura a seguir:

Assim, as sucessivas variações impostas sobre o tema original podem ser entendidas como um desenvolvimento do mesmo, caracterizando uma seção única, que aqui chamamos de "B".
Algumas vezes a forma com tema e variações retoma o tema inicial ao seu final, funcionando como uma espécie de recapitulação. Neste caso, fica clara uma forma ternária:


Na verdade, a técnica de variar um material melódico e reapresenta-lo de uma outra maneira é muito antiga e utilizada em quase todas as formas musicais. As suítes barrocas, por exemplo, utilizam muitas técnicas de variação temática. Assim como as técnicas de imitação da música renascentista também podem ser classificadas como técnicas de “variação temática”. O que acontece na forma musical que estamos estudando, a forma Tema e Variações, é que esta técnica de variar o material previamente apresentado é utilizada de maneira muito diferente das outras formas em que aparece como mais um recurso. Aqui ela é o recurso principal. A técnica é usada de maneira sistemática. De acordo com Francisco José Tello “a variação é empregada de modo a criar um tipo formal concreto denominado Tema com Variações, que consta de um número dependente da vontade do compositor de pequenos movimentos ou quadros musicais constituídos pela exposição do tema e cada uma das variações... Pode originar uma obra completa ou estar incluído como movimento de outra obra composta de vários movimentos... Para compor esta forma musical se requer do compositor uma elevada capacidade imaginativa, pois, existe o perigo de se cair na monotonia. A alternância de ritmos, de tempos lentos e movidos, e até de tonalidades, assim como o emprego dos diferentes tipos de variação contribuem para uma maior vitalidade dentro desta forma musical”[1]. Isto é, além dos tipos de variações o compositor tem muitas outras ferramentas que pode utilizar para construir uma peça utilizando a forma citada. O que vale lembrar é que “trata-se de uma forma e não de uma fôrma”, como dizem, com muito humor, alguns teóricos. Muitos compositores utilizaram esta forma de diferentes maneiras ao longo da história da música. Mudando não apenas o número de variações, mas muitos outros elementos como ter ou não uma introdução, ter o tema só no começo, ou também no final, ou até mesmo só no final. Enfim, os grandes nomes da composição musical são sempre aqueles aprendem, estudam e analisam minuciosamente todas as normas para poder quebrá-las consciente e racionalmente, desde que tenha um propósito musical.
Tipos de variação:
As transformações a que o tema é submetido para dar origem às variações podem ser:
a) variação ornamental ou melódica:
A melodia do tema pode ser modificada em seu ritmo, ou mesmo a linha melódica. No entanto, tema precisa continuar reconhecível. Para isso o compositor pode, dependendo da situação, enriquecer o tema com ornamentos, figuras, células rítmicas, escalas, arpejos, etc... ; por outro lado, pode também eliminar notas do tema, enxuga-lo ao máximo tirando o que for desnecessário e deixando apenas o essencial, mudar a acentuação, o ritmo, o compasso, o movimento, etc ... o fundamental é que se mantenha a estrutura da melodia e a harmonização. É este o tipo utilizado por Sor nas Variações Malbroug. A exceção seria a 5a variação onde aparece novo material melódico. Mesmo assim de forma muito breve.

b) variação decorativa ou harmônico-contrapontista:
Neste tipo a melodia permanece sem alterações. Para construir uma variação deste tipo o compositor tem que, como o próprio nome já indica, modificar a harmonia e/ou o contraponto.

c) variação amplificativa, livre ou grande variação:
O tema, aqui, não precisa aparecer completamente. Pode ser sugerido com apenas um fragmento. O tema se transforma então num extenso material melódico que pode ser dividido em fragmentos e usados para, junto com novos elementos, construir muitas variações. Neste tipo de variação a liberdade é muito maior e as vezes torna-se difícil ao ouvinte reconhecer o material melódico do tema que está na variação.

As Variações Malbroug, op. 28

“Malbroug s’em va-t-en guerre,
Miranton, Miranton, Mirantaime.
Malbroug s’em va-t-en guerre,
Ne sait quand reviendra

Il reviendra a Pâques ou a la Trinité,
Ou a la Trinité.

La trinité se passe
La trnité se passe,
Malbroug ne revient pás.”
(letra da canção popular francesa que inspirou Fernando Sor)

As Variações op. 28 foram publicadas em 1827 pouco depois que Fernando Sor volta da Rússia. A obra não tem dedicatória e aparece num difícil momento da vida do compositor em que estava acabando seu relacionamento amoroso com a bailarina Felicite Hullin. É um momento em que Sor também recebe críticas de seus colegas franceses, que censuram muitas de suas idéias. É provável que se sentisse um estranho longe de seu país.
Apesar da indicação de allegretto no tema, com a parte A sendo piano e a parte B em meso forte, cria-se uma dinâmica que, mesmo numa melodia festiva e alegre como a deste tema, traz uma sensação de melancolia. A peça está toda escrita em 6/8, e a tonalidade utilizada é ré maior. A 6a corda está afinada em ré, o que cria um “peso” adicional ao instrumento, administrado com sabedoria pelo compositor. Sem falar que esta sensação de melancolia é preparada pela introdução que começa com uma referencia ao tema feita pelo baixo com as duas notas na primeira frase sendo dominante-tônica, e na segunda frase dominante-supertônica. Entra então o acorde de mi menor e continuam as referencias ao tema. Em nenhum momento da introdução o ré grave da 6a corda é utilizado. A introdução se da em andante-largo e fica no campo da dominante, sem concluir na tônica, fazendo constantes referências ao tema criando uma expectativa que é suprida com uma melancolia contemplativa na chegada do tema que, como foi dito, é feito em allegretto e piano. No momento em que começa o tema, o ré grave é utilizado no baixo, sendo revelado como uma “surpresa” bem guardada durante a introdução.
Não pode ser afirmado que o compositor tenha tido nesta peça algum tipo de raciocínio descritivo, ou se seu pensamento foi puramente técnico. O fato é que é bem sugestiva a ordem em que se encontram as variações nesta peça. A análise que aqui está não traz em nenhum momento a visão de compositor sobre sua obra, mas sim a de um estudante (do séc. XXI) a cerca desta peça. Portanto, é necessário levar-se em conta que as visões das variações como sendo descritivas é algo estritamente pessoal e que é, na verdade, utilizado como recurso para uma melhor compreensão e interpretação da obra.
Na 1a variação continua-se em allegretto, mas a parte A começa em meso forte, com uma pequena “cascata” de notas numa escala descendente fazendo uma ponte da Tonica para a dominante, e a parte B em forte com uma célula rítmica tipicamente militarista. Tanto o tema como as variações (exceto a 5a ), têm a forma binário circular. Ou seja, começa apresentando um certo material melódico na parte A, no inicio da parte B apresenta novo material e em seguida retorna o material da parte A, as vezes com uma pequena alteração no final.
Na 2a variação a melancolia volta com mais destaque. A tonalidade vai para o modo menor e o tema é apresentado em andantino. É inevitável a comparação desta melancolia com a frase da letra da canção popular francesa que diz que “Malbroug foi para a guerra e não sabe se vai voltar”. Utilizando uma imaginação descritiva nesta parte da peça, é possível imaginar o nosso herói Malbroug se dando conta dos horrores da guerra. Ao fazer esta especulação é bom lembrar que Sor como militar devia ter uma visão de respeito e admiração pelo soldado guerreiro. Mas, lembrando sempre, isso é pura especulação. Podia ser também que ele estivesse na verdade ironizando secretamente os franceses e os militares com esta peça. Não sabemos, nem tão pouco pretendemos descobrir. As imagens descritivas têm uma única função: melhorar a compreensão da obra, faze-la funcionar. Retornemos à análise técnica. Novamente, a parte A começa em piano. Mas o contraste de dinâmica aqui aumenta, pois, a parte B vai para forte. Finalizando com um crescendo na última linha que vai até o meso forte, criando o clima perfeito para a entrada da próxima variação.
A 3a variação volta para o modo maior e para o allegretto, e já começa com um pesado arpejo em oitavas simultâneas na tônica com a dinâmica em forte. Temos aqui mais um “momento de batalha” do nosso herói Malbroug. A peça segue esta seqüência nas variações: momentos de “batalha” seguidos de uma “melancolia contemplativa”. Tanto a parte A como a parte B começam com forte e terminam com piano.
Vem agora um outro momento contemplativo: a 4a variação. A tonalidade continua em ré maior, mas o andamento agora é piu lento e a dinâmica começa em meso forte. Parece ser um momento de reflexão sobre toda “guerra” e de preparação para a “batalha final” que está por vir. A forma cantabile com que se apresenta a melodia nos faz imaginar o nosso herói Malbroug lembrando de sua família, de sua amada, etc,etc ... um clima de saudosismo romântico e ao mesmo tempo de expectativa sobre o que irá acontecer no desenrolar da finalização de sua “saga”.
Finalmente, a última e decisiva batalha de Malbroug: a 5a variação. Novamente em allegretto e a dinâmica em meso forte, mas agora cada tempo do 6/8 apresenta uma tercina criando um ritmo que lembra uma cavalaria a toda velocidade em direção ao campo de batalha. Vale ressaltar a dificuldade técnica da execução desta variação no violão: a melodia do tema encontra-se na segunda nota das tercinas de cada tempo, criando uma grande dificuldade de deixa-la em destaque e de dar clareza à intenção do compositor. Como nas outras variações, são apresentadas as partes A e B, mas logo em seguida surge uma terceira parte (c). Esta parte C parece ser exatamente o momento em que a cavalaria chega ao campo de batalha. Ela começa com uma célula rítmica tipicamente militar que lembra o toque marcial de guerra das cornetas, retornando em seguida o ritmo da cavalaria mas agora em si menor e resolvendo em uma cadencia perfeita dominante-tônica. Entra então uma parte contemplativa/melancólica novamente em que o tema é reapresentado em piano com a indicação lento a piacere, utilizando harmônicos de mão direita, seguido de uma pequena codeta e a resolução com acordes em pianíssimo. Numa visão otimista, podemos imaginar um reflexivo “final feliz” para nosso herói Malbroug: apesar de ferido, sobreviveu à guerra e voltou à sua pátria, mas com a consciência de que no horror da guerra não existem vencedores, mas sim sobreviventes.
Peço desculpas se exagerei na interpretação descritiva da estória do Malbroug. Segue uma citação do autor Paulino Garcia Blanco sobre o final desta 5a variação: “ ... esta é a única obra de tema com variações em toda a produção de Sor, em que a coda, em lugar de ser a habitual mostra de habilidade e técnica instrumental brilhante, surpreende oferecendo a indicação Lento, com o tema sendo apresentado em harmônicos, sumindo em uma escuridão que, quem sabe, naqueles momentos invadia também a cabeça do compositor”[2].

Conclusão
Este tema foi escolhido por conta do trabalho realizado durante os semestres passados com a Suíte II para violoncello solo de Bach, e, no primeiro período, com a música renascentista de Luys Milan. Estou assim seguindo uma linha cronológica. Mas, a grande vantagem de ter escolhido este tema foi que a partir desta pesquisa pude entender melhor o espírito das composições de Sor, e também suas idéias com o instrumento desempenhando a função de “pequena orquestra”. Para mim foi também de extremo valor em minha formação o contato com a teoria das formas musicais. Estudar a forma tema com variações neste semestre, fez com que eu refletisse sobre a importância destas pesquisas semestrais: além do conhecimento adquirido, que é de fundamental importância, a pesquisa cumpre também um papel de estimulante ao estudo da música e do instrumento. Explicando melhor: depois de pesquisar um pouco a vida de Sor, fica aquela vontade de conhecer mais sua obra e também de seus contemporâneos; depois de ler sobre a forma Tema e variações fica uma grande vontade de conhecer mais peças neste formato; enfim, depois de escrever sobre Malbroug, a vontade é de sentar com o violão e tocar as Variações Malbroug.
Esta pequena pesquisa foi o complemento ideal para o trabalho realizado durante o semestre, pois ajudou a dar mais embasamento teórico e histórico para interpretação da peça abordada.


Bibliografia


· BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires, ed. Ricordi, 1947.
· BERRY, Wallace. Form in Music. New Jersei: ed. Prentice Hall 1986.
· BLANCO, Paulino Garcia et al. La guitarra Espanhola. Barcelona: ed. Glossa Music, 2000.
· DART, Thurston. Interpretação da Música. São Paulo, 1a Edição, Ed. Martins Fontes, 1990.
· Dicionário de termos musicais Groove. 5a Edição.
· GROUT, Donald S. Et al. História da Música Ocidental. Distrib. Brasil-Multinova: Ed. Gradiva.
· KIEFER, Bruno. História e Significado das formas musicais. Porto Alegre . Edição, Ed. Movimento, 1981.
· SOR, Fernando. Twenty Studies for the guitar. (----): Andre Segóvia Edition, 19??.
· TELLO, Francisco José Leon. Teoria y estética de la musica. Madrid: Ed. Tauros , 1988.ZAMACOIS, Joaquin. Curso de las formas musicales. Barcelona, Ed. Labor, 1960.
[1] TELLO, F. J. Teoria y estetica de la musica
[2] BLANCO, Paulino Garcia. In La guitarra espanhola (1818-1919)