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domingo, 22 de junho de 2025

O Violão Segundo Carlevaro: Técnica a Serviço da Arte

 


No The Tao of the Guitar, buscamos sempre mergulhar na essência do violão, entendendo sua técnica como um caminho para a expressão artística e o autoconhecimento. Nesse sentido, a obra e a filosofia de Abel Carlevaro se alinham perfeitamente com essa visão. Carlevaro nos convida a enxergar o violão não apenas como um instrumento, mas como uma extensão do corpo e da mente, onde a técnica serve à arte e ao sentimento. Neste post, “O Violão Segundo Carlevaro: Técnica a Serviço da Arte”, exploraremos como seu legado pedagógico, composicional e interpretativo reflete essa busca por uma prática consciente, integrada e profundamente musical — um verdadeiro "Tao do Violão".

Mais um post aqui para o nosso blog The Tao of the Guitar, que neste ano especial completa 20 anos de história. Desde 2005, seguimos juntos compartilhando descobertas, reflexões e inspirações sobre o universo do violão clássico. Hoje, vamos falar sobre o legado de um mestre que mudou para sempre a maneira como pensamos e tocamos o violão: Abel Carlevaro (1916-2001).


Abel Carlevaro: inovação e sensibilidade no violão


Nascido em Montevidéu, em 1916, Carlevaro foi um daqueles músicos raros que unem virtuosismo, criatividade e uma profunda vocação pedagógica. Ele não se contentou em apenas dominar o instrumento: questionou tradições, estudou a fundo a relação entre corpo e violão, e propôs uma abordagem revolucionária para a técnica violonística. Carlevaro via o violão como uma extensão do ser, defendendo que cada violonista deveria buscar uma postura e técnica que respeitassem sua própria anatomia. Sua obra mais conhecida, “Escuela de la Guitarra”, não é apenas um método, mas um convite à reflexão: nela, ele separa o estudo técnico do estudo musical, permitindo que cada aspecto seja desenvolvido de forma consciente e personalizada. Seus cadernos de técnica são referência mundial, mas o mais importante é sua filosofia: a técnica deve sempre servir à arte, nunca o contrário. Como professor, Carlevaro estimulava a autonomia do aluno, valorizando a auto-observação e o entendimento do próprio corpo. Seu pensamento influenciou gerações de violonistas e segue vivo em salas de aula, palcos e estúdios ao redor do mundo.

Aqui está um texto fundamental do próprio Maestro, extraído da página 20 de seu livro “Escuela de la Guitarra”, que resume como poucos a essência de sua visão:


A TÉCNICA A SERVIÇO DA ARTE

"Um dos grandes problemas instrumentais tem sido sempre a técnica. Esta não é o resultado puramente físico da ação dos dedos, ela é uma atividade que obedece à vontade do cérebro; nunca pode ser um estado irreflexivo.

Por um lado, há algo que é necessário aprender: o ofício. E, por outro lado, deve existir algo nosso, que ninguém nos pode ensinar. Ao intérprete se apresentam dois problemas: o aspecto puramente mecânico de uma obra musical e como deve expressar-se tal obra. Convém sempre começar por este último. Desde o primeiro momento é necessário entrar na arte porque, como vamos trabalhar uma obra sem saber o que temos que expressar? Não esquecer nunca isso, porque do contrário a arte se desnaturaliza. Se o ofício propriamente dito passa a ocupar o primeiro plano, a arte terá perdido sua qualidade própria.

Contudo, quem não possui uma grande técnica não poderá ser um grande intérprete. O que importa é o ponto de partida: se provém do espírito irá ao espírito; do contrário será só um produto de laboratório. A diferença básica entre o verdadeiro intérprete e o simples executante está em que este se baseia no trabalho mecânico separado de toda outra ideia, fazendo ressaltar unicamente o malabarismo digital o qual cuida como um precioso dom, dando à técnica um valor em si, uma personalidade, uma autonomia que não lhe pertence. Orgulhoso de seu poder crê conseguir com ele tudo que pode desejar o virtuoso. E essa técnica, produto de tantos sacrifícios, está a serviço do quê? Qual a razão que nos demonstra a verdade de tal hipertrofia? É um absurdo pretender conseguir fazer música utilizando a técnica como único fim, sem pensar em nada mais, desumanizando a arte. Cuidado com esse monstro! Depois de criado é necessário superar suas forças para obrigá-lo a servir aos valores puros da arte. Senão, produzir-se-á irremediavelmente o contrário.

O espírito e a matéria são duas forças que devem unir-se para a criação da arte. Então a matéria se fará um pouco espírito, e o espírito tomará formas concretas. A arte pertence ao domínio do espírito; a técnica é patrimônio da razão. Da união desses dois elementos nasce a manifestação artística, verdadeira simbiose criada pelo homem." (Abel Carlevaro)


O violonista e professor brasileiro Sidney Molina publicou, em seu canal no Youtube, um detalhado vídeo sobre o legado de Carlevaro. Molina aborda os princípios técnicos do violonista uruguaio, sua carreira como intérprete e compositor, além de destacar seus contatos com grandes nomes como Andrés Segovia, Heitor Villa-Lobos, Manuel Ponce e Camargo Guarnieri. São apresentados exemplos musicais de obras como o "Prelúdio n. 3" de Villa-Lobos e também composições próprias de Carlevaro. 



Existe, também no Youtube, um vídeo com explicações de Carlevaro sobre sua técnica e pensamento pedagógico.  Pelo que pude pesquisar, o vídeo "A Guitar Lesson with Abel Carlevaro" foi gravado em 28 de maio de 1997, em Heidelberg, na Alemanha. Trata-se de um registro único e histórico em que o próprio Carlevaro explica sua técnica e filosofia por meio da demonstração de cinco de seus Microestudios. O propósito da gravação foi documentar e divulgar a abordagem pedagógica inovadora de Carlevaro, mostrando em detalhes sua teoria instrumental e os fundamentos técnicos que ele desenvolveu ao longo de sua carreira. Esse material é especialmente valioso por apresentar o mestre explicando diretamente seus conceitos, o que não só serve como aula para violonistas, mas também como testemunho histórico da evolução do violão clássico no século XX.



Abel Carlevaro, além de revolucionar a técnica e a pedagogia do violão clássico, também inovou no próprio instrumento que utilizava. A partir de um determinado momento da sua carreira, ele passou a tocar um violão com um design completamente diferente, criado em colaboração com o luthier espanhol Manuel Contreras, a partir de 1983, em Madri. Esse violão, conhecido como o Modelo Carlevaro, apresenta características únicas que rompem com o formato tradicional do instrumento. A parte superior da caixa de ressonância, onde o braço do violonista repousa, é reta, enquanto a parte inferior mantém a curvatura usual para encaixar na perna do músico. Essa configuração faz com que a superfície do tampo se assemelhe ao formato de um piano de cauda, o que, segundo Carlevaro, melhora a vibração das notas graves, ampliando (teoricamente) a ressonância e a projeção sonora do instrumento. Outra inovação marcante é o fechamento do tradicional buraco redondo no tampo, substituído por uma fenda fina (“slot”) que percorre toda a curvatura do tampo. O tampo, por sua vez, não está fixado rigidamente às laterais, mas é praticamente “flutuante”, sustentado apenas por pinos de madeira que o conectam às partes laterais da caixa. Assim, o violão é composto por duas partes quase independentes: o fundo e as laterais, e o tampo que vibra com maior liberdade. Essa construção singular permite uma maior eficiência na transmissão das vibrações das cordas para o corpo do instrumento, resultando em um som mais rico, com graves mais profundos e uma resposta dinâmica diferenciada. Esse instrumento reflete perfeitamente a filosofia de Carlevaro: uma busca constante por otimizar a relação entre músico, técnica e som, sempre com base em princípios anatômicos e acústicos que favorecem a expressão artística e o conforto do intérprete.


Neste vídeo Carlevaro explica suas ideias sobre seu instrumento:




Abel Carlevaro foi, além de um violonista e pedagogo excepcional, um compositor cuja produção serve sobretudo como complemento à sua visão pedagógica e técnica do violão. Sua obra composicional reflete diretamente a aplicação prática dos princípios que desenvolveu em sua didática, funcionando como uma extensão musical das soluções técnicas que propôs. Entre suas composições mais conhecidas e estudadas estão os Micro-Estudios, pequenos estudos focados em aspectos específicos da técnica violonística. Esses estudos não apenas exercitam dificuldades técnicas isoladas, mas também possuem coerência musical própria, exemplificando a chamada “técnica idiomática” de Carlevaro, que parte dos movimentos naturais do instrumento para construir sua linguagem harmônica e sonora. Outro conjunto importante é o dos Prelúdios Americanos. Essas peças incorporam influências da música popular e erudita latino-americana, especialmente do Rio da Prata, e revelam uma preocupação com a sonoridade e a mecânica do violão. Dedicados à Andrés Segovia, estes cinco prelúdios — Evocación, Scherzino, Campo, Ronda e Tamboriles — são obras que demonstram uma linguagem própria, alinhada à técnica e à expressividade que Carlevaro valorizava. A técnica idiomática de composição, característica marcante de sua obra, baseia-se na análise detalhada dos movimentos e da postura do instrumentista, buscando uma coerência entre os elementos técnicos e a estrutura musical. Essa abordagem está fundamentada em sua Teoria Instrumental, apresentada no livro Escuela de la Guitarra (1979), que é o marco de sua obra pedagógica. Embora Carlevaro tenha composto outras peças e concertos, sua produção como compositor é vista principalmente como um complemento à sua atuação como professor e intérprete. Suas composições são estudadas não só como repertório, mas também como exemplos práticos da integração entre técnica e arte, oferecendo ao violonista um caminho para desenvolver a técnica a partir da música. Assim, a obra composicional de Carlevaro se insere como um terceiro eixo em sua carreira musical, junto com a performance e a pedagogia, formando uma síntese poética e técnica que continua influenciando violonistas e estudiosos do instrumento.

Aqui está um exemplo de um grande músico interpretando uma destas obras. Preludios Americanos III Campo, por Everton Gloeden:




E aqui, Abel Carlevaro interpretando um dos famosos Estudos de H. Villa-Lobos:




Sobre discos.

Abel Carlevaro gravou relativamente pouco em comparação com sua extensa carreira como professor e concertista, mas os registros que deixou são de grande valor histórico e artístico para o violão clássico. Sua discografia reúne gravações feitas desde o final da década de 1940 até os anos 1990, incluindo álbuns solo, recitais e coletâneas que refletem seu repertório e sua visão técnica e musical. Entre os discos mais relevantes estão:

- Sin Título (1949) — seu primeiro registro, um disco de 78 rpm gravado em Londres, que já mostra sua técnica refinada e interpretação pessoal.

- Recital de Guitarra (1958) e 2º Recital de Guitarra (1960) — gravados pela gravadora Antar em Montevidéu, são registros importantes de sua fase inicial como concertista.

- Abel Carlevaro, guitarriste (Ducretet-Thompson, França) — uma gravação que ajudou a divulgar sua arte na Europa.

- Carlevaro plays Carlevaro (1986) — álbum em que interpreta suas próprias composições, incluindo os famosos Micro-Estudios e Prelúdios Americanos.

- 20 Microestudios (1998) — uma gravação dedicada exclusivamente a esses estudos que são parte central de sua pedagogia.

- Recital de música española (1975 e relançamentos posteriores) — com obras de compositores espanhóis e latino-americanos que integravam seu repertório.

Entre outros ... Seu trabalho discográfico, embora não volumoso, é fundamental para entender sua abordagem interpretativa e pedagógica, servindo tanto como fonte de estudo quanto como inspiração para violonistas ao redor do mundo.

Aqui está um link para um de seus álbuns hospedado na plataforma de streaming que uso atualmente:

The Guitar of Abel Carlevaro, Vol. 1: https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mags_ZQc2j7q_Z_XCz1InvwVWknAYIRyk&si=8x9yRhtiAMf66oT-


Para finalizar nosso post de hoje, vou deixar aqui alguns links que podem ser úteis pra quem quiser se aprofundar mais:

- Lista de discos (Discogs): https://www.discogs.com/pt_BR/artist/1854486-Abel-Carlevaro

- Tese de Celso Delneri sobre a técnica composicional de Carlevaro: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-13112015-101451/publico/CELSOTENORIODELNERIVC.pdf

- O livro "Escuela de la Guitarra" traduzido e comentado por Álvaro Henrique: https://alvarohenrique.com/escuela-de-la-guitarra-de-abel-carlevaro-em-portugues/

- Wiki: https://en.wikipedia.org/wiki/Abel_Carlevaro

- Artigo no Mangore.com: https://www.mangore.com/carlevaro-7-27-105


Espero que tenham gostado e que seja útil e inspirador de alguma forma. E que o pensamento cartesiano de Carlevaro continue inspirando nossos estudos e nossa música, assim como tem inspirado estes 20 anos do The Tao of the Guitar. 

Grande abraço musical e fraterno. Ótimos estudos pra todos nós.


:)

[]

João Paulo Pessoa.


Um comentário:

Joao Paulo Pessoa disse...

Pedi pra I.A. Perplexity para comparar as ideias pedagógicas e interpretativas de Abel Carlevaro com o pensamento cartesiano. Veja o resultado: "A filosofia de estudos de Abel Carlevaro guarda uma relação interessante com o pensamento cartesiano, especialmente no que se refere à busca por clareza, método e consciência no processo de aprendizagem. Assim como René Descartes propôs a dúvida metódica e a análise racional para alcançar o conhecimento seguro, Carlevaro desenvolveu uma abordagem científica e sistemática para o estudo do violão, baseada na observação detalhada da mecânica corporal e na decomposição dos movimentos em elementos claros e isolados.

No livro Escuela de la Guitarra, Carlevaro expõe sua teoria instrumental com rigor analítico, identificando pontos de contato do violão com o corpo e estudando separadamente cada componente do gesto técnico, o que remete ao método cartesiano de dividir um problema complexo em partes menores para facilitar a compreensão e a solução. Essa postura racional e consciente visa eliminar tensões desnecessárias e promover uma técnica natural e eficiente, fundamentada no conhecimento anatômico e biomecânico.

Além disso, Carlevaro incentiva o estudante a questionar, experimentar e adaptar as soluções técnicas às suas particularidades, valorizando o pensamento crítico e a auto-observação, o que dialoga com o espírito cartesiano de não aceitar nada como verdadeiro sem exame cuidadoso. Dessa forma, sua pedagogia transcende a simples repetição mecânica, propondo um caminho reflexivo e fundamentado para o domínio do instrumento.

Em resumo, a filosofia de Carlevaro pode ser vista como uma aplicação prática do racionalismo cartesiano ao estudo do violão: um método consciente, analítico e progressivo que busca a clareza técnica e a liberdade expressiva por meio do conhecimento detalhado do próprio corpo e do instrumento." :) ... Obrigado Perplexity.